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Nos últimos anos, o Brasil testemunhou a expansão silenciosa, mas significativa, de práticas que revelam o colapso das formas tradicionais de vínculo afetivo. Entre elas, destaca-se o fenômeno dos “bebês reborn”, bonecas hiper-realistas cuidadas como se fossem crianças vivas. Segundo a jornalista da Folha de São Paulo Vitória Macedo, no seu artigo (Por que mulheres são criticadas por ter ‘bebês reborn’, e o que isso diz sobre a maternidade), esse é um movimento que já acontecia nos EUA e chega no Brasil ganhando força entre mulheres de 40–70 anos. Um dos primeiros estados que apoiou a comunidade reborn, foi o Rio de Janeiro. Através do vereador Victor Hugo que chegou a aprovar a criação do Dia da Cegonha Reborn. Vitor Hugo justifica que esses “bebês” são usados por psicólogos como ferramenta de apoio em casos de luto e traumas ligados à perda gestacional ou neonatal. Os reborns também têm sido uma forma de memória afetiva e conforto emocional para pais e mães que não têm ou não conseguem herdeiros. 15214p

É lícito observarmos que os objetos comercializados para decorar ou vestir os bebês, são vendidos por valores que ultraam R$ 3 mil e acompanhados de enxovais completos, certidões de nascimento e até rituais simbólicos de “adoção”, não são meros brinquedos ou itens de coleção. É óbvio que os bebês reborns, tem o seu espaço terapêutico, todavia, é necessárop analisar se os números realmente são consideráveis. Renato Dolci colunista do infoMoney diz que o movimento é muito hype, pouca estatística e trás uma análise sobre os bebês reborn sob a lente dos números. Renato trás dados da Market Report Analytics, a maior parte do público consumidor de bebês reborn é composta por mulheres adultas colecionadoras, que representam 60% do total. Em seguida, 25% dos casos envolvem o uso como presente infantil de categoria “”, destinado principalmente a crianças. O uso em terapia clínica aparece com 10%, sendo adotado por profissionais da saúde para fins terapêuticos. Há também jovens e homens envolvidos em fóruns e conteúdo, que representam 3% do consumo. Por fim, 2% do uso é institucional, incluindo escolas e produções cinematográficas.

Além dos dados, a comunidade tem sofrido uma parcela significativa das críticas aos vídeos sobre cuidados com “bebês reborn”, publicados nas redes sociais, aponta para a romantização excessiva da maternidade, frequentemente apresentada de forma idealizada e desvinculada das complexidades reais da experiência materna.

Bonecas realistas de participantes do encontro de bebês reborn — Foto: Arquivo Pessoal /UOL

Seria esse fenômeno expressões de uma subjetividade em crise, marcada por lutos não elaborados, solidão crônica e uma crescente incapacidade de estabelecer relações afetivas autênticas com a alteridade humana?

A comunidade que orbita em torno dos reborns não se reconhece como doente, mas como afetivamente sensível. Em grupos fechados no Facebook, fóruns no Reddit e canais de YouTube, mulheres em sua maioria adultas, algumas em luto por filhos perdidos, outras enfrentando a infertilidade ou o envelhecimento solitário, compartilham experiências, rotinas, cuidados e confissões com a mesma intensidade devocional que antes se via nas comunidades religiosas. Trata-se, no entanto, de uma religiosidade deslocada: o bebê reborn, inerte, incondicionalmente “presente”, não contesta, não frustra, não morre. É um filho ideal. Mas é também uma negação radical da alteridade, da imprevisibilidade e do sofrimento implicados em toda relação humana real.

Esse fenômeno não é isolado. Ele dialoga com outras tendências contemporâneas igualmente reveladoras de um deslocamento afetivo. A humanização de pets, por exemplo, transformou cães e gatos em substitutos simbólicos de filhos ou cônjuges. Dados da Abinpet (Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação) revelam que o Brasil é o segundo maior mercado pet do mundo, movimentando cerca de R$ 60 bilhões por ano. Nesse universo, animais de estimação recebem cuidados antes reservados a seres humanos: festas de aniversário, psicólogos veterinários, planos de saúde e creches com câmeras para vigilância em tempo real. A publicidade e o consumo reforçam o discurso de que esses animais não são “como filhos”, mas filhos de fato.

Spot, Hexyc and Tibo — Foto: Richard Ansett/Channel 4

Humanos-pets

Mais recentemente, o fenômeno dos “humanos-pets”, pessoas que adotam identidade animal por meio de fantasias, performances e comunidades online, radicaliza esse processo. Em vez de atribuir a animais status humanos, o humano abdica de sua identidade para se integrar a uma comunidade onde pode ser cuidado, afagado, obedecer comandos, escapar das responsabilidades da linguagem e da história. Em todos esses casos, o óbvio irrefutável que se observa é uma fuga do real. O outro, quando existe, é domesticado; quando oferece risco, é substituído por um simulacro.

O denominador comum entre esses fenômenos é a tentativa de controle absoluto sobre o afeto. No reborn, a relação materna é destituída do risco. No pet, o vínculo é amoroso, mas assimétrico. No humano-pet, a identidade é dissolvida para que o acolhimento não implique reciprocidade. Não se trata apenas de um deslocamento da função simbólica do outro, mas da recusa de qualquer relação que implique dor, frustração, espera ou perda. Estamos diante de um novo regime afetivo, onde o amor não é mais um processo construído na alteridade, mas um produto moldado pela fantasia individual.

O impacto disso sobre a noção de comunidade é devastador. A convivência a a ser mediada por simulações afetivas, e o senso de pertencimento se fragmenta em nichos, algoritmos e bolhas que reforçam identidades sem atrito. Comunidades tradicionais, como famílias extensas, igrejas, bairros e grupos de afinidade real (seja ele qual for), cedem espaço a comunidades performativas, onde o laço é mais imaginado do que vivido. A experiência do cuidado se transforma em consumo. A maternidade, em hobby. O afeto, em espetáculo.

É preciso cuidado para não tratar tais fenômenos apenas com escárnio ou desdém. A mulher que embala um reborn às 3h da manhã não é objeto de ridículo. Ela é o sintoma. Sua prática denuncia não apenas sua dor, mas a falência dos vínculos sociais que deveriam sustentá-la. O mesmo vale para o homem que, vestido como cão, rasteja entre semelhantes em convenções fetichistas ou vídeos virais. Se nos limitarmos à caricatura, perdemos a oportunidade de compreender a dimensão antropológica e política do que está em jogo.

Existe uma dimensão que não devemos descartar. Após a pandemia de covid-19, movimentos ligados a formas alternativas de afeto, cuidado e representação simbólica de vínculos, como o uso de bebês reborn, o crescimento do mercado pet e a emergência da cultura “humano pet”, ganharam visibilidade e adesão significativa em diferentes camadas da sociedade. A pandemia provocou um aumento considerável nos índices de solidão, ansiedade, depressão e suicídio. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), a prevalência global de transtornos de ansiedade e depressão aumentou em mais de 25% no primeiro ano da crise sanitária (relatório publicado em março de 2022). No Brasil, uma pesquisa da Universidade de São Paulo (USP) em parceria com a Fiocruz revelou que 40% da população relatou sintomas de ansiedade durante os períodos mais intensos de isolamento. Nesse contexto, a busca por vínculos simbólicos, ainda que artificiais ou performáticos, se intensificou como estratégia de enfrentamento psíquico e emocional. Os bebês reborn aram a ser vistos não apenas como objetos de coleção, mas como companhias emocionalmente significativas para adultos solitários, em especial mulheres sem filhos ou em luto materno, que encontraram nesses bonecos hiper-realistas uma forma de substituição simbólica e cuidado projetado.

Diante dos dados, comentários e especulações, uma percepção fica clara, a subjetividade contemporânea está em busca de cura, mas escolhe caminhos estéticos em vez de comunitários; simbólicos, em vez de encarnados. O risco é que, ao optar por vínculos sem dor, estejamos também optando por vínculos sem verdade. A simulação do afeto oferece conforto imediato, mas não transforma. O filho ideal de vinil não cresce, não desafia, não perdoa. O pet não pergunta por seu legado. A comunidade performática não exige compromisso, apenas presença estética.

La Basílica de Guadalupe, Villa Gustavo A. Madero, Mexico City, CDMX, Mexico — Foto: UNSPLASH

Uma realidade para o nosso tempo

Assim como terapeutas, sociólogos, antropólogos, teólogos e pesquisadores em geral não podem deixar de observar esse fenômeno, a comunidade cristã, enquanto tal, também deve olhar para ele com atenção, especialmente os sacerdotes. Sim, esse fenômeno afeta, direta e indiretamente, a comunidade cristã, especialmente em suas formas de compreender o sofrimento, os vínculos afetivos e a construção simbólica da vida. Em um primeiro plano, o crescimento de práticas como a adoção emocional de bebês reborn, o “human pet” e a intensificação dos laços com animais de estimação revela uma demanda crescente por sentido, companhia e acolhimento em tempos de profunda crise existencial. Isso deve interpelar a comunidade cristã em sua missão de ser corpo acolhedor, solidário e relacional. Quando pessoas buscam suprir carências afetivas profundas em bonecos hiper-realistas ou em vínculos simulados, há uma pergunta implícita sobre onde está a igreja nesse cuidado e na escuta do sofrimento humano.

Além disso, a fé cristã possui uma doutrina robusta sobre o valor do corpo, do sofrimento, da comunhão e da esperança, que contrasta com respostas muitas vezes individualizadas ou simbólicas demais desses movimentos. Se, por um lado, o cuidado com o “bebê reborn” pode parecer um substituto inofensivo, por outro, pode indicar uma teologia ausente da realidade emocional das pessoas, especialmente das mulheres que enfrentam lutos, frustrações maternas, abandono ou solidão. A igreja corre o risco de se tornar irrelevante se não escutar os sinais culturais do tempo. E isso se amplia quando se considera que a teologia cristã é encarnacional, valoriza o encontro, a comunhão real e o cuidado concreto, não apenas simbólico. A igreja tem ado por mutações, inclusive em sua liderança e talvez tenhamos pouco afeto e engajamento por situações assim, mas algumas instituições podem exercer ainda mais essa sensibilidade e cuidado, essa é minha esperança.

Por fim, esses movimentos também colocam em questão temas como a idolatria do afeto (quando o objeto de cuidado se torna central demais), o culto à imagem (no caso dos reborns hiper-realistas) e o esvaziamento do valor do outro real, todos temas que desafiam a comunidade cristã a responder não com julgamentos apressados, mas com uma escuta pastoral atenta, teologia relevante e práticas comunitárias restauradoras. Ignorar esse fenômeno é abrir mão de dialogar com uma geração que, diante do luto coletivo e da solidão, está reinventando formas de amar, mesmo que simbólicas, artificiais ou performáticas. A igreja, se sensível e encarnada, pode ser um espaço de cura mais profundo e verdadeiro.

Em última instância, o que está em curso é uma erosão da alteridade como fundamento do vínculo humano. Não se trata de negar o valor do lúdico, do simbólico ou do afeto com animais. Trata-se de compreender que, quando esses elementos se tornam substitutos absolutos do outro humano, do vínculo real, do cuidado mútuo, deixamos de ser uma sociedade de laços para nos tornarmos uma sociedade de cenas, onde tudo pode ser encenado, menos o amor que transforma.